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Vânia Maldini Penna e
Maria Gabriela C. D. Peixoto |
Alguns duvidam, talvez por pouca informação atualizada.
De fato, nos ensinaram que não. E nós também já ensinamos que o mais eficiente
era maximizar as produções em sistemas e raças especializados. Seguindo este
paradigma, enormes avanços ocorreram na produção. Nos países desenvolvidos, a
produção de leite aumentou em muitas raças num ritmo constante de 50 a
100kg/ano, por cerca de 50 anos.
Resultados indesejáveis das produções maximizadas
Entretanto, estes avanços na produção foram acompanhados
por decréscimo na robustez e adaptabilidade dos animais. As vacas ficaram cada
vez mais exigentes, menos férteis, “complicadas”, “difíceis de lidar”, segundo
produtores. Nas fases iniciais, por volta dos anos 1980, os produtores e
técnicos lidavam com o decréscimo na rusticidade adaptando o ambiente aos
animais. Isto foi ficando cada vez mais difícil e caro. Vieram os estudos que
mostraram
haver antagonismo genético entre nível de produção e aspectos
funcionais (fertilidade, saúde, longevidade, etc.). Assim, os programas de
melhoramento em todo o mundo passaram a dar especial atenção às chamadas
características funcionais. Estas, usualmente apresentam alta variabilidade
genética e são facilmente deterioráveis. Em geral são difíceis de serem
selecionadas pelos métodos convencionais devido às baixas herdabilidades.
Assim, apesar dos esforços, a situação foi piorando cada vez mais nas últimas
décadas. Os avanços na produção absoluta não eram acompanhados de avanços na
“produção real”, ou seja, nem sempre correspondiam a aumentos de produção na
vida útil, muito menos na lucratividade. Mais referências em “Versatilidade e
sustentabilidade no melhoramento do Guzerá” (Revista Guzerá, 2009) e “Problemas
dos rebanhos leiteiros com genética de alta produção”, no site www.fernandomadalena.com/
indice_23.html. Vários problemas passaram a ocorrer com elevada frequência.
Alta mortalidade, baixa fertilidade, problemas de cascos, mamites,
susceptibilidade a parasitos e outras doenças. Exigência de altos níveis de
concentrados, gastos muito elevados com insumos e medicamentos. Aumentos na
quantidade de leite que não correspondiam a aumentos na qualidade remunerada
pelo mercado (% de proteína, gordura, sólidos totais, contagem de células
somáticas, etc.). Baixos valores de bezerros e vacas de descarte devido às
“perdas na musculatura” decorrentes do foco exclusivo na seleção leiteira. E,
ainda, o uso muito intenso de alguns reprodutores muito famosos reduziu a
variabilidade genética, conduzindo a perigosos aumentos na consanguinidade, com
efeitos drásticos na reprodução, no vigor e comprometendo o melhoramento em
longo prazo. Hoje existe um sério problema de “endogamia globalizada”. Tudo
isto precisava ser revertido. Atualmente, o objetivo primordial da maioria dos
rebanhos e raças é a redução de custos, particularmente os decorrentes de baixa
fertilidade e baixa rusticidade, fontes de descartes involuntários (por mortes,
doenças, falhas reprodutivas, etc.) e custos extras. Nos EUA e na Europa muitos
produtores se voltaram para a utilização de cruzamentos ou mesmo para
utilização de outras raças para fazer face às perdas em saúde e rusticidade
(Ducrocq, 2010). Tais perdas não ocorreram apenas no gado leiteiro, mas também
no de corte e em outras espécies. Em geral, como consequência da seleção para
maximização da produção com objetivos de lucro de curto prazo, sem considerar
as restrições biológicas e os ganhos de longo prazo. Com os novos conhecimentos
adquiridos pela ciência e com as mudanças do cenário mundial, os antigos
paradigmas foram reavaliados. Muitos mudaram e até se inverteram. Muito do que
aprendemos e ensinamos como “certo” agora temos que ensinar que “hoje é errado”
e vice-versa. Coisas da ciência que está em constante reavaliação. E
necessitamos evoluir com ela. Como estas mudanças são razoavelmente recentes, é
natural que o conhecimento de muitos esteja defasado e que continuem a
acreditar em conceitos já ultrapassados. Compreensível, mas não justificável,
particularmente no meio científico e técnico. Cabe a estes acompanhar e divulgar
as mudanças de conceitos e de “verdades”.
Novos paradigmas
As abordagens atuais são principalmente econômicas. O
foco não está mais em “produzir muito”, mas em “produzir bem”, com lucro,
qualidade e respeito ao meio ambiente e aos animais. Não apenas resultados
imediatos são considerados, mas também os de médio e longo prazo. A “boa” vaca
leiteira não precisa ter produções absolutas altíssimas, e sim eficientes e
condizentes com o ambiente econômico de produção. Rusticidade, fertilidade,
versatilidade e sustentabilidade são as novas palavras de ordem. A seleção visa
hoje a obtenção de animais aptos a produzir economicamente nos sistemas em que
irão lidar. Atualmente, a produção não se baseia em um único modelo. Existe uma
gama muito maior de sistemas de produção do que no passado. Desde os
especializados e intensivos aos não especializados, “naturais”, “orgânicos”,
etc. Todos eles devidamente analisados pela pesquisa. Para se ter uma ideia,
nas últimas reuniões da European Association for Animal Production, têm sido
apresentados trabalhos sobre sistemas altamente tecnológicos, inimagináveis
alguns anos atrás, mas também alternativas eficientes e econômicas bem mais
simples. Entre estes, trabalhos sobre aspectos que em passado recente seriam
considerados “atrasados e ineficientes”, como uso de apenas uma ordenha/dia em
certos sistemas, produção com base em pastagens e redução de uso de
concentrados, etc. Funcionalidade e lucro Nas condições mais atuais de mercado
a lucratividade de uma empresa rural é altamente relacionada com redução de
custos, versatilidade do sistema e qualidade dos produtos. Uma forma de reduzir
os custos é melhorar características funcionais de importância econômica. Estas
são principalmente relacionadas com adaptabilidade, sobrevivência e aspectos
que reduzem a carga metabólica das vacas (Solkner et al 2000). Além das
vantagens econômicas, a adaptabilidade ao ambiente e a rusticidade são
importantes para aspectos cada vez mais demandados pelo consumidor, como
segurança e qualidade alimentar (livre de pesticidas, antibióticos, hormônios,
aditivos, etc.). Produtos para alimentação saudável, natural ou orgânica, que
atendam aos requisitos de bem-estar animal, etc., são cada vez mais exigidos ou
contam com sobre preços. Muitos países já têm várias exigências neste sentido,
para importação de produtos de origem animal, as atualmente importantes
“barreiras não sanitárias”. Salienta-se que o Brasil tem melhores condições de
atendê-las do que muitos outros países (p.ex.: animais a pasto, ordenha na
presença do bezerro, etc.), sendo importante considerá-las em nossos programas
de seleção e cuidar de não perder estas vantagens já existentes. Versatilidade
e lucro, “a carne do leite” A importância do aproveitamento da carne dos
animais oriundos de rebanhos leiteiros tem ficado cada vez mais evidente para a
sustentabilidade econômica destes sistemas e para o meio ambiente. A chamada
“carne leiteira” (dairy beef) passou a ser “aproveitada” em todo o mundo. Tem
sido recomendada como uma oportunidade de diversificar operações e aumentar a
renda, principalmente quando a produção é com base em pastagens. Demonstrou-se
que o “lucro secundário” da carne nos sistemas leiteiros costumava ser
subestimado e que ele representa considerável aumento nos rendimentos e
desempenha importante papel na cadeia alimentar. Por exemplo, 50% da carne
consumida no Reino Unido é “leiteira” e a tendência é de aumento desta
porcentagem. Nos EUA, Schaefer (2005) estimou que 2,35 milhões de bezerros
Holstein são comercializados anualmente para carne. Estudos mais recentes
indicam que 20% da carne consumida no país provêm de rebanhos leiteiros, cada
vez com melhor qualidade, já que os produtores têm se preocupado mais com a
qualidade da carne, da carcaça e do rendimento. Tanto na Europa quanto nos EUA
existem hoje vários “programas de qualidade de carne oriunda de gado de leite”
sendo conduzidos por universidades, associações e órgãos governamentais que
contam com incentivos econômicos. Existe aumento no interesse de identificação
de linhagens mais eficientes em velocidade de crescimento, conversão alimentar
e que produzam melhor rendimento. Vale repetir para os que ainda insistem na
“angulosidade” dos animais leiteiros, que ela hoje não é mais desejável; ao
contrário, é punida com pesos negativos na maioria dos índices de seleção,
inclusive no da Holstein Friesian Association, nos EUA. Esta mudança ocorreu
após demonstração do antagonismo genético de fertilidade e saúde com a tão
preconizada “forma leiteira” e com as altíssimas produções. Animais
“descarnados” produziam muito em uma lactação, mas não em sua vida produtiva
nem de forma mais lucrativa. Verificou-se que a seleção para animais
“angulosos” diminuiu a fertilidade e o desempenho funcional e deveria ser
revertida. Conforme Lee et al. (2010), particularmente em sistemas onde existem
flutuações na qualidade da alimentação, a seleção para capacidade de acumular
gordura nas novilhas pode ser usada para contrapor aos efeitos indesejáveis da
seleção para maior produção nas reservas de energia das vacas. Estas reservas
são fundamentais para manter a produtividade e fertilidade em períodos
subótimos de alimentação, que ocorrem na produção a pasto devido às variações
da qualidade do mesmo, no decorrer do ano. Ou seja, atualmente a vaca leiteira
não precisa (nem deve!) ser descarnada. Os animais com mais músculos e capazes
de armazenar gordura são capazes de compensar, com suas reservas corporais, os
períodos de nutrição desbalanceada, apresentando melhor persistência,
fertilidade e saúde. Estes aspectos são favoráveis à produção simultânea de
carne e leite. Infelizmente, muitos não tomaram conhecimento disto e ainda se
ouve por aí que a vaca leiteira deve ter “as três cunhas”! Hoje isto é mito.
Dupla aptidão e lucro Neste novo cenário, as raças e sistemas de dupla aptidão
que “andavam esquecidos” da ciência e da mídia, readquiriram importância e
passaram a ser mais estudados, em particular na Europa. Diversos trabalhos
demonstraram haver importante espaço a ser ocupado por eles na pecuária mundial.
Popularmente é dito que permitem “aproveitar a vaca inteira”. Os altos preços
dos bezerros de raças de dupla aptidão em relação aos das leiteiras são
incentivo a produzir bons bezerros e menos leite (com menores custos de
alimentação e manejo) por vaca, favorecendo-as (Graser e Averdunk, 1990).
Enfim, hoje está bastante comprovado que não apenas é possível, mas, em muitos
casos, desejável econômica e ecologicamente, produzir leite e carne de
qualidade em um único sistema de produção. E que, junto da produção
especializada de carne ou de leite (sempre haverá situações em que serão as
mais adequadas), existe importante e crescente espaço para a dupla aptidão.
Este pode ser preenchido pelo melhoramento da capacidade de produção de carne
nas raças leiteiras, pelo de cruzamento destas com raças de corte ou de dupla
aptidão ou pelo uso de raças melhoradas para dupla aptidão.
No Brasil e em outros países tropicais
Para os países tropicais, as vantagens da dupla aptidão
podem ser mais acentuadas. Sua utilização é antiga e atualmente crescente.
Estudos econômicos indicaram que a rentabilidade da pecuária leiteira