8 de ago. de 2011

A MÁGICA SERTANEJA.


"Seu Manelito" e Cezar Mastrolorenzo - Faz. Carnaúba - 2010

               Muitas pessoas me perguntam se em vez de ficar lutando contra a seca no semi-árido não era melhor eu vender tudo e comprar uma propriedade em um local de clima mais úmido. Não entendem o porquê da minha birra em lutar contra as adversidades no sertão já que facilmente eu poderia adquirir uma terra em um local com índices pluviométricos mais favoráveis.
               Respondo sempre com uma velha desculpa que a propriedade foi de meu pai, e que por motivos familiares eu dou continuidade ao trabalho dele e outras justificativas melosas e cheias de valores familiares. Na verdade com meu pai já falecido, poderia me desfazer da propriedade e adquirir algo mais fácil de administrar, que ao menos não sofresse das adversidades climáticas do semi-árido. 

               Qual a mágica que a caatinga exerce sobre os sertanejos? De onde sai à conhecida “fibra sertaneja”? A mesma fibra que combateu sozinha metade do exército nacional, lembrando Canudos. A força que faz o caatingueiro enfrentar seca após seca, anos de privações, muitas vezes passando fome. De onde o homem do sertão tira a chama de esperança que move os seus pés calejados através das veredas e caminhos repletos da vegetação seca espinhosa e retorcida?
                 A caatinga, vegetação predominante do semi-árido, parece possuir alma própria, ou seja, quando chega o período das secas, ela se despe, prepara-se para o pior. Livra-se das folhas para preservar ao máximo a própria existência. Quando chega o período das águas de dezembro a março, ela se veste em flor, e no mais lindo espetáculo se torna bonita e perfumada. Tudo é festa. Os passarinhos vão e vem em revoada, os preás correm de toca em toca, procissões de catitus, pequeno porco selvagem, circulam entre os umbuzeiros lambuzando-se de frutos maduros que caem do pé. As Seriemas em grupo fazem coro em baixo dos juazeiros. Jacus do tamanho de galinhas banham-se nos poços de água retidas nos lajedos. Os riachos cantam zoando ao bater nas pedras. A água se perde morro abaixo. O verde dói aos olhos, quando vem o sol ele brilha mais forte transformando o verde em um reluzente verde-prateado. É a fartura.
                De abril a julho tão logo as chuvas se vão o sertanejo armazena o fruto de sua produção, a farinha o feijão e o milho. No chiqueiro na ceva quatro ou cinco leitões esperam a lavagem, pretos não só pela cor dos pelos, mas também pela cor da lama que se espojam. No campo a burregada corre solta, na larga a vacada gorda rumina na sombra de uma velha umburana. Passam-se os meses e os leitões viram mantas de carne seca, conservou-se uma porca para o ano seguinte dar cria, dos cabritos, os que escaparam dos ataques da suçuarana e da jibóia, foram vendidos na feira e feitos em rapadura, sal, café, e pólvora.  Na apartação dos bezerros, o mais bonito da cara preta vai ficar para marruá. Os outros vão pastar na manga do cajueiro.

Itatim -Ba (2003)
                 E como tudo na vida é cíclico recomeça o verão. O homem do campo se apressa. Vende os mamotes que dão pra carne de sol, se apertar mais tira alguns pra fresco. Agosto chega com vento do sul e frio. Não choveu no inverno. As águas estão secando, setembro é chegado e nada de camboeiro, outubro vem com esperança das chuvas da flor do umbuzeiro. A caatinga se despe. Livra-se dos inúteis e pesados acessórios , as folhas caem, o tom marron pastel domina, só se vê de verde o incó, as copas dos juás, algarobas e a palhada dos ouricurí e pindoba. O mandacaru antes uma inútil vara espinhosa que nem sombra dá, transforma-se em artigo de luxo, cortado em pedaços e misturado ao sal, vira tosco e cobiçado banquete para o pastio do rebanho. É chegado novembro, a poeira levanta no trote do gado no fundo do riacho, no tanque onde agonizam as traíras, a lama é disputada por rebanhos e animais silvestres, o guará a noite fez o seu repasto saboreando um mandi que ficou preso na lama. Dezembro se avista próximo. A procissão de Santa Bárbara se aproxima, enche-se o peito de esperança, o vento é norte. Os mandacarus que escaparam de serem devorados começam a florir, as aranhas caranguejeiras são vistas ao descoberto, formigas em frenético movimento fazem longos carreiros em busca de seu sustento, o sal no cocho derrete, no norte relampeia, à noite na varanda vendo o relâmpago riscar o céu, o sertanejo sente um cheiro inconfundível para ele, o cheiro de terra molhada. Em poucos minutos chega o deus vento, anunciando que a chuva está chegando.  Na madrugada ouve-se uma sinfonia que embala os sonhos do sertão. É a cantiga do riacho correndo. Está completo o ciclo.

  
Rinaldo dos Santos (E) Cezar Mastrolorenzo e José Caetano (D)
Fazenda Tombador Itatim-Ba (2011)
Junto com o ciclo da caatinga, o sertanejo se adapta. No verão sua alma fica tesa, adquire a mesma fibra dos galhos secos e retorcidos, se livra de meandros inúteis, briga com o destino de maneira rude, sem fraquejos ou momentos para sequer pestanejar, aceita a adversidade e o infortúnio resignado. Uma certeza ele carrega, a fartura virá. Nas chuvas sua alma enche-se de alegria, assim como uma árvore florida. O sertanejo se permite até brincar, fazer a “pega” dos bezerros no campo, ir numa reza, brincar no forró. A manifestação de alegria da caatinga se confunde com a alma do sertanejo. Ora seca e resignada, despojada de brios aceita a própria sorte e não tem vergonha de se mostrar despida de beleza e, em outro momento majestosa e cheia de vida, uma vida interior só sentida por quem convive diariamente com ela.
           Espero que ao ler este texto, todos aqueles que me perguntam o porquê da minha obstinação e admiração pela caatinga, também tenham nas suas vidas um dia a benção de viver essa experiência maravilhosa de se sentir terra, se sentir chão. Afinal da terra viemos e para nossa mãe voltaremos um dia.

Cezar Mastrolorenzo é
criador de Sindi no município de Itatim, semi-árido baiano.







 

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